Há 30 anos na polícia, delegada Patrícia Zimmermann D´Ávila fala sobre o começo da profissão e os desafios na profissão.
Tem coisa que só uma mulher pode fazer por outra, como tirar o leite do próprio peito para saciar a fome do filho de outra mãe. Tem coisa que um policial precisa ter empatia para fazer, como amamentar o bebê que chora desesperado de fome, enquanto a mãe, minguada, conta à polícia ser vítima de violência doméstica e que o pai das quatro crianças trocou alimentos por cachaça.
Tem coisa que uma pessoa que trabalha com vulneráveis precisa aprender, como não julgar, pois isso caberá ao judiciário, ainda que dias depois veja a mesma mulher que fez a denúncia retirar a queixa e preferir continuar vivendo com o agressor.
— Não se trata de aliviar a responsabilidade, mas quando uma mulher pensa em dar fim ao relacionamento, ela bota na balança outros sentimentos: anos de convivência, filhos que tem com aquele homem, amor dos filhos pelo pai. A mulher sabe que existe ex-companheiro, mas não ex-pai. Por isso, existe um conflito interno muito grande e que, infelizmente, corrobora também para os casos de feminicídios — pontua a delegada Patrícia Zimmermann D´Ávila, atual coordenadora das Delegacias de Proteção à Criança, Adolescente, Mulher e Idoso em Santa Catarina (DPCAMI).
A observação é de quem entende do assunto. A delegada, de 53 anos, atua 30 anos na polícia. Foi ela, ainda no começo da carreira de policial, em Rio do Sul, quem amamentou o bebê faminto. Na época, não existiam as “Salas Lilás”, importante meio para o acolhimento da mulher vítima de violência em DPs do Estado. O ambiente conta com brinquedoteca em que as crianças podem aguardar o atendimento da mãe, sendo a oitiva da vítima feita em local apropriado e acolhedor, sem a presença de público e dos filhos.
— Já trabalhei na investigação, mas lidar com um crime com tantos fatores emocionais, como os que envolvem a mulher, é um desafio. No roubo ou furto, a vítima tem sentimento de raiva, de vingança. Na violência familiar, há uma relação íntima de afeto e a gente tem que considerar isso. Feminicídio é um crime que pode ser prevenido, mas muito difícil de ser evitado. Como fazer com que uma mãe denuncie um filho, uma avó denunciar o neto, uma mulher denunciar o homem que ela ama? — diz.
Seriado inspirou escolha da profissão
De origem católica, a família Zimmermann tem sua história em Rio do Sul, no Alto Vale do Itajaí. Patrícia começou a trabalhar bem cedo no mercado dos pais, onde arrumava prateleiras, levava sacolas nas casas dos clientes e ajudava no caixa. Mas foi pela TV que descobriu o gosto pela profissão.
Aos 10 anos, se tornou fã do seriado com Katy Mahoney (Dama de Ouro), policial investigativa de crimes violentos em Chicago (EUA). O personagem era interpretado pela atriz Jamie Rose. Com ousadia teve certeza do caminho a seguir. Certa vez, aproveitando-se da proximidade com o delegado regional Lauro Cesar Braga, amigo do pai, pediu-lhe para acompanhar os plantões de final de semana. Com 13 anos e ainda estudante no Colégio Dom Bosco, tinha curiosidade sobre como seriam as tardes de domingo numa DP.
Como os plantões eram praticamente com serviços burocráticos, o delegado concordou com que ela frequentasse o lugar. Até que, certa vez, um grave acidente de trânsito com oito mortos quebrou a monotonia. O regional nem percebeu, mas a adolescente não se conteve: infiltrou-se entre os policiais e foi até o Instituto Médico Legal (IML) ver os corpos. Tomou uma enorme bronca de Braga, mas respondeu com coragem.
— Se eu quero ser policial, se é com isso que quero trabalhar, como ter medo? — devolveu ao experiente delegado.
Mais tarde, já prestes a terminar o Ensino Médio, foi inquirida pelos pais sobre a faculdade que iria cursar.
— Quero fazer Direito para ser delegada de polícia — falou na época. O casal concordou com o curso, mas não com a função. Achavam perigoso uma mulher ser delegada de polícia.
Patrícia não gostou, mas decidiu fazer Direito, em Blumenau, e aproveitar que o irmão trabalhava num escritório de advocacia para pegar jeito. Enquanto isso, seguia tocando estágio no Ministério Público. Lá, de novo, esbarrou numa situação que a empurrava para a questão das mulheres: a assistência judiciária gratuita.
— Eu tinha consciência de que, apesar de não sermos uma família rica, meus pais conseguiam manter quatro filhos na universidade. Encarava o atendimento como uma forma de recompensar por tudo já alcançado — relembra.
Quando já estava casada, recebeu o incentivo para as provas do concurso para a polícia. Foram três tentativas até conseguir.
— Meus pais não tinham mais o que fazer: só rezar. E foi deles um presente que guardo com muito carinho: uma placa com meu nome entalhada na madeira e o escudo da Polícia Civil de Santa Catarina — diz.
Hoje, são 1.034 mulheres nos quadros da instituição. Atualmente existem 71 delegadas, sendo 41 titulares em delegacias, em conexão com o trabalho da DPCAMI. Um dos orgulhos da delegada, até 04 de junho, era o fato de todos os feminicídios em Santa Catarina estarem esclarecidos.
“A mulher é constantemente desafiada a provar qualificação, currículo, conhecimento”
Patrícia Zimmermann é casada com o delegado Aldo Pinheiro D’Ávila, secretário adjunto da Secretaria Estadual de Segurança Pública de Santa Catarina. O casal se conheceu no final do curso de Direito, na Universidade de Blumenau, a Furb. Do casamento de quase 30 anos, nasceram duas filhas, uma com 23 e outra com 19 anos. O caminho profissional das meninas parece traçado: uma se dedica ao Direito e quer ser delegada, enquanto a outra pretende seguir a Medicina Legal.
— O curioso é que uma delas diz: quero seguir os passos da mãe, “esquecendo” que o pai também é advogado e delegado — brinca Patrícia.
Ao longo da carreira, Patrícia estudou bastante e aprimorou o conhecimento no tema violência contra a mulher. Fez pós em Violência Doméstica Familiar, em Direito Processual e é mestre em Ciências Jurídicas. Apesar da qualificação, já enfrentou situações constrangedoras. Durante a pandemia, após uma explanação do currículo, ouviu de um colega: “Que bom conhecer um pouco mais sobre a senhora, pois a gente imagina que tenha chegado aonde chegou por ser casada com o doutor Aldo”. Para a delegada, uma cena que se repete com outras mulheres no mercado de trabalho.
— A gente é constantemente desafiada a provar que tem formação, currículo, estudos, conhecimento, transferências por merecimento. Nós vemos mulheres como eu, com toda essa experiência, e que ainda pairam as dúvidas sobre o exercício da profissão — complementa.
Só falta nos cobrarem por termos um marido bacana”, brinca a policial
Patrícia está lotada na 6ª Delegacia de Polícia de Florianópolis. Até a transferência para a Capital, em 2015, fazia plantões. Paralelo às atividades policiais, seguia a formação acadêmica:
— Eu sempre busquei me atualizar e nunca me joguei nas costas do companheiro de vida e de profissão. Só falta nos cobrarem por termos um marido bacana — brinca.
Flamenguista, avaiana e apaixonada pelo verde e rosa da Estação Primeira de Mangueira. A delegada, que já botou muito marmanjo em cana, também gosta de cozinhar, ouvir música e aproveitar a praia. Atual vice-presidente do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher de Santa Catarina, conta que já recebeu convite para entrar na política, o que no momento está fora de cogitação.
— Teria tempo de contribuição previdenciária suficiente para pedir a aposentadoria, mas me acho com energia para continuar trabalhando como policial — explica.
Pelo jeito, a voltagem anda alta: recentemente curtiu o sertanejo na Festa do Pinhão, em Lages, levou uma das filhas no show da Taylor Swift, em São Paulo, e já dançou com o cantor canadense The Weekend.
— Sou eclética na música — fala.
Quem vai duvidar da delegada que se inspirou em Katy Mahoney?